A maioria das pessoas não tem ideia do quanto uma tradução pode prejudicar o sentido original de certas palavras, e do quanto essa perda pode trazer consequências graves. Um dos maiores exemplos desse problema encontra-se no substantivo grego “pístis” e no seu correlato verbal, “pisteúo”, os quais possuem a mesma raiz e igual sentido.1
Porém, não há em língua portuguesa um substantivo e verbo que possuam a mesma raiz e igual sentido para se traduzir “pístis” e “pisteúo”. Sendo assim, para “pístis” a maioria das traduções utilizam o substantivo “fé” e para “pisteúo” o verbo “crer”.2
Fé não é apenas crença
Não devemos criticar os tradutores, pois quando não há uma palavra com o mesmo sentido só lhes resta encontrar algo que seja o mais parecido possível. No entanto, nesse caso específico, a utilização do verbo “crer” como se fosse correlato de “fé” trouxe uma perda muito significativa para o sentido original dos termos gregos que essas palavras traduzem.3
Na língua portuguesa “crer” se limita a ser um sinônimo de “acreditar”, mas no grego da época em que o Novo Testamento foi escrito, tanto “pístis” quanto “pisteúo” significavam mais do que apenas uma crença em algo ou alguém. Esses termos gregos carregavam consigo também o sentido de “confiança” e “fidelidade”, de modo que, por exemplo, “crer” em Jesus era entendido como alguém ter o firme propósito de se unir a ele.4
A verdadeira fé salvadora
O fato é que, à luz do sentido original do Novo Testamento, a fé em Cristo não significa meramente se acreditar em fatos a seu respeito, mas trata-se de haver confiança em sua pessoa e fidelidade para com os seus ensinamentos. Quem realmente tem fé em Cristo não apenas crê que ele existiu, mas também confia nele como seu Salvador e busca obedecê-lo como seu Senhor. Para facilitar a memorização do significado original da “fé” salvadora podemos utilizar três palavras iniciadas com a letra “c”:
Sendo assim, uma pessoa que declara ter fé em Jesus, somente estará em Cristo se crer nele de modo tão confiante a ponto de se comprometer em segui-lo, demonstrando fidelidade pela prática dos seus ensinamentos. Do contrário, sem essa confiança e disposição para ser fiel, não há verdadeira fé, mas apenas uma crença. Por esse motivo Tiago adverte em sua epístola que “a fé sem obras é morta” (Tg 2:17,26). Porém, isso não significa que sejamos salvos por obras, mas sim que a verdadeira fé em Jesus resultará em boas obras, pois neste caminho do bem o Senhor nos ensinou a viver. Ora, “aquele que diz que está nele, também deve andar como ele andou.” (1Jo 2:6).5
Uma ressalva
A depender do contexto, os mesmos vocábulos “pístis” e “pisteúo” podem dar maior ênfase para apenas um dos seus três aspectos, enfatizando mais a crença, ou a confiança, ou a fidelidade. Porém, em tais ocorrências, o próprio contexto nos revela se o entendimento deve ser mais restritivo.
Conclusão
Não necessitamos de uma nova tradução em língua portuguesa para “pístis” e “pisteúo”, mas apenas da compreensão de que o substantivo “fé” e a conjugação verbal de “crer”, quando se referem a Cristo, ultrapassam o mero acreditar intelectual e passivo, significando um profundo envolvimento da pessoa inteira. Valendo-se de uma ilustração do próprio Senhor, podemos afirmar que crer em Jesus significa ser tão unido a ele quanto um ramo precisa estar unido à videira para que possa dar muito bom fruto (João 15:1-5).
1. Há também o adjetivo πιστός (pistós), geralmente traduzido como crente ou fiel. Exceção para 3 João 5, onde se traduz como “fielmente”, na maioria das versões.
2. A dificuldade na tradução de “pístis” e “pisteúo” foi percebida desde o fim do quarto século, quando Jerônimo de Estridão iniciou sua tradução da Bíblia para o latim, conhecida como Vulgata. Não havendo palavra que traduzisse “pístis” com exatidão, Jerônimo optou por “fides”, vocábulo latino cujo sentido é mais aproximado, significando “fé”. Porém, não havendo em latim um correspondente verbal para “fides” (tal como em grego há entre pístis e pisteúo), Jerônimo optou por escolher o verbo “credere” – tradução que deu início à errônea redução da fé a uma crença. Melhor seria Jerônimo não ter conjugado pisteúo com credere, mas traduzi-lo por “ter fé”, mesmo isso resultando em duas palavras como tradução de apenas uma. Huberto Rohden, filósofo que traduziu o Novo Testamento, ao perceber esse problema optou por “ter fé” como tradução para o verbo pisteuou. Por exemplo, o famoso “para que todo aquele que nele crê não pereça” foi traduzido por ele como “para que todo aquele que nele tiver fé não pereça”. Interessante observar que em sua primeira versão do Novo Testamento, realizada antes de 1945, ano em que deixou de ser padre jesuíta, Rohden manteve o equívoco da Vulgata. Teria sido ele pressionado pelo romanismo para manter a tradição? Ou ainda não havia se dado conta da gravidade do problema? Anos depois, livre do catolicismo romano, Rohden escreveria o seguinte alerta: “A substituição de ter fé por crer há quase dois mil anos está desgraçando a teologia, deturpando profundamente a mensagem do Cristo.” (A Mensagem Viva do Cristo, pág. 91)
3. “No Novo Testamento, ‘fé’ é traduzido pelo grego pistis (da forma verbal pisteuo), que significa ‘confiança, lealdade, compromisso, dedicação’. [...] Quando São Jerônimo traduziu o Novo Testamento do grego para o latim, pistis se tornou fides (lealdade). Como fides não tem forma verbal, Jerônimo traduziu pisteuo por credo, que deriva de cor do: “Dou o coração”. Não pensou em opinor (opino). Na tradução inglesa da Bíblia conhecida como King James Version (1611), credo e pisteuo se tornaram I believe (eu creio). Mas desde então o sentido da palavra belief (crença) mudou.”(ARMSTRONG, Karen. Em Defesa de Deus. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 98)
4. O tradutor francês André Chouraqui, compreendendo que “fé” significa aderir a alguém, foi radical em sua tradução dos evangelhos, optando por traduzir “pístis” como “adesão”, e “pisteúo” pelo verbo “aderir”. Em João 11:25, por exemplo, encontramos Jesus dizendo, na versão de Chouraqui:
Outro tradutor, Marcelo Musa Cavallari, escolheu “confiança” e “confiar” como melhores opções, de modo a traduzir o mesmo versículo do seguinte modo:
Quem está certo? De certa forma, ambos, pois ter fé em Jesus também significa confiar nele a ponto de haver total adesão, ou seja, de alguém estar e permanecer em Cristo.
5. Alguns afirmam que Tiago 2:24 estaria contradizendo o que Paulo declarou a respeito da justificação pela fé em Romanos 3:28. Porém, apesar desses dois versículos mencionarem fé e obras, não se trata do mesmo tipo de obra. Paulo está se referindo a obras da lei, mas o contexto da epístola de Tiago não se refere a obras da lei, mas a obras de amor ao próximo, as quais resultam de uma verdadeira fé em Jesus Cristo. O mesmo Paulo dirá, escrevendo aos Efésios, que somos “criados em Cristo Jesus para as boas obras, as quais Deus preparou para que andássemos nelas.” (Ef 2:10) A esse respeito Nijay Gupta, erudito em Novo Testamento, concluiu: “Paulo não tinha problema algum com as obras em si. Suas cartas estão intensamente voltadas ao fazer o que é bom e correto como uma questão de obrigação (1Ts 5:15-22; Gl 6:9,10).” (GUPTA, Nijay. Paulo e a Linguagem da Fé. – Rio de Janeiro, RJ: Thomas Nelson Brasil, 2023; p. 224). John Stackhouse nos lembra que “tanto Paulo quanto Tiago eram judeus convertidos ao cristianismo. Sua herança de fé era um todo firmado na aliança entre Deus e seu povo. Ser fiel significa crer no que Deus diz; confiar no seu perdão das coisas passadas e na sua provisão para o futuro; e cooperar com ele no presente em tudo quanto sua obra requer.” (Fundamentos do cristianismo: um manual da fé cristã. – São Paulo: Vida Nova, 2018; p. 32).
Atualizado por Alan Capriles em 28/06/2025